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Redes sociais: cuidado com as premissas

Estamos usando as palavras de maneira perigosa. Elas, que deveriam ser as nossas ferramentas de compreensão do mundo, se tornaram instrumentos de falsificação da realidade. Fazemos isso, sem querer, quando subordinamos as palavras a um pré-conceito. Quando isso ocorre, nenhuma pretensão de objetividade se torna possível, e os fatos passam a ser descritos de maneira equivocada, implausível, desarrazoada e anti-científica. Em outros termos, quem escreve hoje abre mão de procurar a realidade. Ao contrário: quer apenas reforçar a sua crença nas coisas. Descobrir o mundo é menos importante do que assegurar o que se quer do mundo. Para o homem inseguro do século XXI, mais vale validar a sua versão dos fatos do que aprender. Nossa linguagem deixou de ser uma linguagem de descrição do mundo, e passou a ser uma linguagem de visão do mundo. Há sempre uma premissa que fundamenta toda a ideia (e narração) das coisas. Seres emocionais que somos, cremos que a correta descrição do universo é aquela que valida aquilo em que acreditamos.  Porém, quando as palavras deixam de ser usadas para se tentar compreender o mundo e apreender algo que não se sabe - provocando, assim, muitas vezes, uma necessária mudança – e passam a ser utilizadas em subordinação a uma visão de mundo, o que se produz nunca é bom. Os nazistas usaram de uma linguagem distorcida para a promoção de seu genocídio, e usavam termos como desalojamento e mudança de suas vítimas, quando o que realmente faziam era o assassinato em massa de judeus e outras minorias. A linguagem empregada pelos nazistas partia da premissa de que os judeus não eram humanos. Galileu não podia dizer que a terra orbitava em torno do Sol, porque era obrigado a narrar o mundo a partir do pressuposto religioso de que era o Sol que orbitava a Terra.  Quando a linguagem se subordina a uma crença, perde qualquer vestígio de neutralidade na descrição dos fatos. Não há jornalismo que resista, quanto mais ciência. Aliás, é por isso que as ciências objetivas dependem do método científico e as humanas, como o direito, usam do devido-processo para atingir qualquer resultado. No fundo, estão apenas verificando se o produto obtido ao final do discurso é o mais próximo possível da realidade, e não apenas o resultado de crenças insculpidas na linguagem utilizada no processo. Daí a importância da metalinguagem na ciência, da investigação dos fatos e boa escolha das palavras no jornalismo sério. Na época das redes sociais, o grande mal do discurso subordinado a uma premissa falsa, imoral, ou anticientífica é que, ao ser repetido em massa, essa descrição de mundo ganha um ar de normalidade que é - perdoem-nos a franqueza, mas é esta mesma a palavra adequada - assassina da capacidade das pessoas de ver o mundo. A linguagem não mais liberta. Ela passa a prender a mente. No WhatsApp e em outras fontes de informação rápida, a degeneração do uso da linguagem faz temer a própria subsistência das sociedades modernas. Na “Nova Linguagem” das redes, a subordinação da linguagem à crença pessoal do tio-do-zap produz premissas para a descrição de fatos que são quase que  invariavelmente danosas, porque corroem, quando não aniquilam, a já desgastada fé das pessoas nas instituições humanas e no próximo. Tome-se como exemplo a pandemia. A premissa é que ela seria falsa ou proposital. É doloroso observar que alguns acreditam que todos os governos do mundo se uniram em uma conspiração global para limitar a liberdade das pessoas, ou supostamente beneficiar o governo chinês.  Outro caso, trágico, são as vacinas, cuja premissa narrativa é a de que fariam (ou poderiam fazer) mal. Seria mesmo crível supor que todos os governos querem o mal para os seus cidadãos, que todos os cientistas, ou agências de saúde, estão errados ou de má-fé ao apontar que as vacinas são seguras e necessárias? Não há mais pessoas boas em nenhum governo? Todas são ruins? O aquecimento global causado pelo homem, de que todos já sentimos os terríveis efeitos, é outra questão. Primeiro, as teorias conspiratórias falavam que ele era falso. Agora, aduzem que ele realmente ocorre, mas é natural, e não antropogênico, nada obstante a ciência, há muitos e muitos anos, dizer o contrário. Realmente devemos acreditar que décadas de destruição ambiental não nos trariam consequência alguma? Que a quase unanimidade dos cientistas estão errados? Que a ação, nas ciências naturais, não provoca qualquer reação? Agora, no Rio Grande do Sul, no zap-zap, dou-me conta de que o governo estaria dificultando ao máximo as medidas de assistência ao atingidos por essa terrível catástrofe climática (provocada pelo homem). Sério mesmo? O que o governo ganharia com isso? Quantos votos? Devo mesmo supor que todos no governo federal ou gaúcho são estúpidos ou incompetentes? Que não há pessoas de bem em um governo só porque ele seria de esquerda ou de direita? Em todos estes casos, se estivermos atentos, perceberemos que as premissas que encobrem as narrativas são absurdas, inverossímeis. Em outros tempos, envergonhariam quem as defendesse. Contudo, com a subversão da linguagem pela crença, os discursos paranoicos de descrição de mundo ganham terreno. Pior, em muitos casos são estimulados e abraçados pela mídia e pela sociedade. Rendem votos. O que pode ser feito a esse respeito? A resposta passa por mais educação. O homem é um ser mais emocional do que racional. Tende a acreditar nas coisas mais em virtude da legitimação social e emocional do emissor do discurso do que em virtude de seu mérito. É mais fácil crer no que o amigo fala do que no cientista renomado aduz. Temos uma sensação de pertencimento com o amigo que só podemos ter com o cientista se conhecermos, ao menos um pouco, o conteúdo da matéria, ou como ela foi feita. A ciência precisa urgente melhorar a sua comunicação, e para isso precisamos de educação. Sem ela a crise da subordinação da linguagem não passará. Isso que vivemos hoje não é passageiro. Veremos um mundo cada vez mais fragmentado, e surreal, em sua descrição.  É certeza, contudo, que um dia esse espírito de época passará. A história é implacável. Teremos compreendido que as palavras devem ser usadas com cuidado e que o que diferencia o homem dos animais é que só o homem é capaz de fazer, e acreditar, em estórias. Justamente por isso que elas devem ser usadas com responsabilidade. (*) Leonardo Duarte é professor e ex-presidente da OAB/MS.

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