O que está em jogo no Brasil não é o presidencialismo, é a disputa pelo orçamento público, de que se apropria a elite do atraso, que o jornalista defende
Um dos impulsos do jornalista é ser crítico para não parecer chapa branca. Compreendo, e é válido. Porém, se a crítica é desonesta intelectualmente, o que poderia ser positivo para a sociedade – no sentido de alertar governantes sobre erros – se transforma em uma armadilha, e é preciso discutir as intenções do autor. Se fruto do despreparo ou da realização de uma campanha com objetivos políticos inconfessáveis.
É o caso do artigo de Merval Pereira publicado nesta terça-feira em O Globo. Não me incluo entre os que desqualificam intelectualmente o jornalista, talvez o mais identificado com as posições da família Marinho. Pouco antes de morrer, o fotógrafo Orlando Brito me falou de um caso em que a habilidade e a determinação de Merval foram importantes no processo de abertura política.
Brito e Merval obtiveram o anteprojeto de lei da anistia, elaborado pela equipe do ministro Petrônio Portella no final dos anos 70. Houve pressão dos militares para pegar o texto de volta e impedir sua publicação. Segundo Brito, Merval negou que tivesse os papéis, e os escondeu até que fossem publicados.
Portanto, quando quer, Merval faz jornalismo, o que elimina a hipótese de que agiu por inépcia ao comparar Lula a Javier Milei no artigo desta terça-feira.
"Os dois, cada um à sua maneira, usam as armas que têm para pressionar o Congresso e obter a aprovação de medidas que consideram indispensáveis para o prosseguimento de seus planos. Embora Milei seja mais histriônico e ameace diretamente o Congresso com uma revolta popular caso não consiga a aprovação de seu “Omnibus”, o governo petista não deixa de ser mais agressivo na decisão de enviar ao Congresso uma Medida Provisória decretando justamente o contrário do que os parlamentares acabaram de decidir", escreveu.
Merval vai mais longe, ao equiparar a popularidade de Lula ao populismo de Jair Bolsonaro.
"Lula chegou a ter 80% de popularidade e ridicularizava os que o rejeitavam: — Em que mundo vivem? — perguntava, irônico, sem imaginar que estavam acossados sob o tacão populista do momento, que, do nada, virou o pêndulo em 2018", afirmou.
Em seus três mandatos como presidente, Lula sofreu derrotas no Congresso e no Supremo Tribunal Federal, e nunca ameaçou nenhuma dessas instituições. Tocou o governo, mesmo quando houve uma perda substancial de receita. Só para citar um caso: foi assim quando o Senado acabou com a CPMF, que financiava a saúde pública.
Então, por que Merval faz essa equiparação? A resposta é o movimento político para tirar poderes de Lula no caso de reeleição, ao impor ao Brasil o tal semipresidencialismo, nome novo para uma velha receita da elite, o parlamentarismo, rejeitado duas vezes em plebiscito.
"O que está em jogo é a sobrevivência do sistema de governo vigente na Argentina e no Brasil", diz. Para ele, o presidencialismo nos dois países se confunde com o populismo, e aí se chega a outra distorção da elite. Para esta, colocar o povo no centro das atenções é negativo.
Posições como a de Merval escondem o real objetivo das críticas de jornalistas alinhados ao projeto da elite, que pode se chamar de neoliberalismo.
O que está em jogo não é o presidencialismo, é a disputa pelo patrimônio público, de que se apropria a elite seja pelo juros altos, que tiram um naco expressivo do orçamento, ou seja pelas privatizações.