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Causo 1: passamos a perna nos gringos

Anderson Pires*

Costumo brincar e dizer que sou doutor em cultura inútil, vulgo tudólogo. Já vivi um bocadinho, andei muito por esse mundo, leio de maneira aleatória tudo que me intriga, transitei por alguns cursos: arquitetura, engenharia, filosofia, comunicação, gastronomia e, recentemente, até um curso de história numa universidade em Portugal, que só aguentei por seis meses.

Na verdade, conhecimento é sempre útil. Na minha profissão como publicitário e na vida, o tempo todo, serve para compreender o mundo, entender a complexidade da humanidade e rende até boas conversas numa mesa de bar. Sendo assim, resolvi contar alguns causos dessa trajetória que me formou na tudologia.

Em 1998, era primeiro-tesoureiro da União Nacional dos Estudantes, a UNE, e havia um debate interno sobre a internacionalização da carteira de estudante. A UNE já produzia carteiras internacionais através de um convênio com o STB, Student Travel Bureau, que era detentor dos direitos no Brasil.

Mas as pretensões do STB eram mais ousadas, transformar todas as carteiras de estudante no Brasil em internacionais sob sua gestão. Naquela época, éramos o maior mercado no mundo onde a carteira era gerida por uma entidade vinculada aos estudantes e de forma unificada. Na maioria dos países existem diversas entidades que concorrem pela representação dos universitários.

Mas a UNE era uma experiência única. Além da sua importância histórica, conseguia manter quase todas as entidades de base unificadas em torno da sua representação. Não era um feito qualquer, principalmente, se levarmos em consideração as dimensões continentais do Brasil, com lugares de difícil acesso e comunicação precária.

Por todas essas características, o STB mirou em usar todo o poder da UNE, com capilaridade em milhares de centros e diretórios acadêmicos espalhados pelos recantos do país. Naquela altura, estávamos falando de cerca de dois milhões de carteiras de estudante, que além do valor do documento, seria o passaporte para a venda de uma série de produtos agregados, como viagens, seguros, passes para trens e ônibus por todo o mundo. Em suma, tinha muito dinheiro envolvido nessa questão.

O trabalho de assédio e convencimento do STB era pesado. Sendo assim, fomos convidados para um Congresso Internacional de Turismo Estudantil e Juvenil, que aconteceria em Miami, com a participação dos principais executivos ligados ao setor, além, é claro, dos dirigentes mundiais da Carteira de Estudante Internacional. Fomos eu e Rodrigo de Carvalho, tesoureiros da UNE, Humberto de Jesus, primeiro-tesoureiro da UBES e Ricardo Leyser, que era nosso gerente do Departamento Nacional de Carteiras.

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Traduzindo, esse pequeno grupo era formado por dois universitários, um filiado ao PT e outro ao PCdoB, um secundarista petista e um executivo também comunista. Provavelmente, seríamos as únicas pessoas naquele evento com esse perfil. E não era um evento qualquer, naquela época, estimava-se que no congresso girariam negócios da ordem de quatro bilhões de dólares.

Mas vamos lá, rumo a Miami. O primeiro impacto foi ao chegarmos ao aeroporto, quando os funcionários do Tio Sam já deram sua demonstração de preconceito e quase barraram nosso amigo Humberto de Jesus, que era negro. Depois de muito moído, deram a ele um visto de permanência mínima que atendia apenas às necessidades da participação no congresso. Ficou claro o tratamento diferenciado. Infelizmente, Humbertinho não está mais com a gente pra ler sobre essa história que vivemos.

Chegamos ao hotel onde ficaríamos hospedados, demos uma volta pela cidade, pois só no dia seguinte estaríamos no congresso. Tínhamos uma reunião agendada com diretores mundiais do ISIC/ISTC, que era credenciado junto a ONU para comercializar e gerir a carteira internacional de estudante.

No dia e hora marcada chegamos ao evento para a reunião. Antes, fizeram um passeio com a gente por uma grande feira que acontecia em paralelo às palestras, nos apresentaram diversos produtos vinculados à carteira internacional de estudante e só depois nos conduziram para a bendita reunião.

Era um lugar luxuoso, com decoração impecável, uma grande mesa de reunião e todo aparato de canapés e bebidas para receber com glamour a todos. Na porta da sala estava a nossa espera a diretora do STB, uma dessas mulheres da Faria Lima, muito bem-vestida, com roupas que certamente custavam uma fortuna. Ela nos viu chegando com nosso jeito de integrantes do Movimento Estudantil e soltou a pérola: como vocês estão bem, vieram tão à vontade, no espírito de Miami.

Quase gargalhei, mas me contive. Estávamos com as velhas camisetas de malha Hering e uma calça jeans qualquer no meio daquele monte de executivos vestidos com paletós bem cortados, prontos para dar o bote e conseguirem nos convencer a fechar um acordo com eles em relação às carteiras de estudante.

Em seguida, sussurrei para Humbertinho, no velho estilo Toinho Aleixo, meu avô, que falava sem abrir a boca: tá vendo aí, tô vendo a hora ela ir trocar de roupa e aparecer com a camisa do Tchê. Vale tudo para nos convencer.

A reunião foi iniciada. Como éramos monoglotas, tinha um tradutor para que a gente pudesse entender as intenções dos gringos, que gentilmente tentavam nos demonstrar como seria vantajoso para aquele grupo de estudantes revolucionários, fazer uma aliança com os capitalistas, boa para todos, principalmente, para os universitários e secundaristas do Brasil.

Conversa vai, conversa vem, eles sacam no final uma carta de intenções, que, resumidamente, dizia que as partes tinham a intenção de firmar um convênio para que o STB no Brasil passasse a ser o emissor das carteiras de estudante da UNE/UBES, as quais, dali em diante, seriam todas internacionais. Ou seja, se isso fosse efetivado, uma conquista histórica deixaria de ser gerida pela entidade estudantil para ficar nas mãos de uma corporação internacional.

Os colegas do PCdoB que estavam na reunião, ficaram convencidos de que o convênio seria bom para a UNE. Nós, os petistas, discordávamos, mas aquele não era o momento de apresentarmos nossas diferenças. Disse então que assinaríamos o documento. Humbertinho falou baixinho do meu lado: Paraíba, nós vamos assinar isso? Respondi: vamos sim, deixa eles pensarem que irão conseguir, carta de intenções não vale nada e no inferno tá cheio.

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Assinamos o documento com toda pompa. Em seguida, os gringos e a turma do STB abriram um champagne, que até aquela data, acho que nunca tinha tomado na vida. Brindamos, rimos muito, deixamos todos felizes e convictos de que tinham alcançado o objetivo do convênio, que precisaria ser aprovado no Congresso de Entidades de Base da UNE – CONEB.

Assim que saímos da sala, Humbertinho falou comigo: Paraíba, isso vai dar merda. Nós somos contra esse convênio e assinamos uma carta de intenções. Disse pra ele: confie em mim. Até o CONEB, muita coisa irá acontecer. Essa proposta nós vamos derrubar lá. Ele olhou pra mim e abriu o sorrisão, o negão era boa gente demais, e disse: você é foda, vai peitar os caras.

Mas aí já é outro causo, esse depois eu conto…

*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.

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