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Desafricanização de Angola

Instituição ligada ao Estado discriminou e dividiu os angolanos entre falantes e não falantes de línguas nacionais, ameaçando os primeiros, o que é abuso de autoridade

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Instituição ligada ao Estado discriminou e dividiu os angolanos entre falantes e não falantes de línguas nacionais, ameaçando os primeiros, o que é abuso de autoridade

Luzia Moniz

Enquanto decorria a visita a Angola do Presidente da União Africana, o Chefe de Estado do Senegal, Macky Sall, defensor dos Povos e dos valores culturais continentais, no Soyo, província do Zaire, foi emitida uma ordem proibindo cidadãos angolanos de falarem línguas nacionais.

A 26 de maio, um membro da direcção da Clínica Sagrada Esperança do Soyo determina, em comunicado, que os funcionários deste centro hospitalar, adstrito à empresa pública de diamantes Endiama, “estão expressamente proibidos de falar línguas nacionais dentro da instituição”.

Ameaçando os trabalhadores, o mesmo documento avisava que, “em caso de incumprimento”, os angolanos que falassem a sua própria língua nas instalações da referida Clínica estariam sujeitos a “procedimentos disciplinares”.

Luísa Fresta, escritora angolana: “A diversidade cultural e linguística dentro de um país tem que ser respeitada” | Foto: Reprodução

O tipo de procedimentos disciplinares, não especificado no documento, dependeria, infere-se, da arbitrariedade da direcção que no comunicado parece querer apresentar-se como a nova “polícia da moral e bons costumes” do tempo colonial.

Se, em Luanda, perante o visitante senegalês, o presidente angolano, João Lourenço, pedia a unidade do continente africano para fazer face às diversas crises mundiais, no Soyo, uma instituição ligada ao Estado discriminava e dividia os angolanos entre falantes e não falantes de línguas nacionais, ameaçando os primeiros o que representa um intolerante abuso de autoridade.

Que terá pensado sobre isso o líder da União Africana que na capital do País defendeu a diluição das barreiras fronteiriças linguísticas e ideológicas entre Angola e o seu País?

Como diluir as fronteiras com países como o Senegal se, internamente, Angola continua a erguer muros, separando os cidadãos nacionais entre bem comportados, os que não usam as línguas nacionais e os que devem ser sancionados por falarem a seu idioma, como se fosse uma infracção ou crime?

“Inacreditável e inaceitável, fazendo lembrar o colonialismo!!! Tal medida nem nunca poderia ter respaldo legal. Para além disso a diversidade cultural e linguística dentro de um país tem que ser respeitada”, indignou-se, nas redes sociais, a escritora angolana Luísa Fresta.

Este claro acto de discriminação contra angolanos, que fazem uso de um elemento estruturante das suas culturas, faz lembrar o Estatuto de Indigenato adoptado pelo regime colonial fascista português, em 1949, durante o Estado Novo e destinado aos povos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Elizabeth Ceita Vera Cruz, pesquisadora angolana | Foto: D. R.

Documento que a investigadora angolana Elizabeth Ceita Vera Cruz, no seu livro “O Estatuto do Indigenato e a Legalização da Discriminação na Colonização Portuguesa” classifica como “o instrumento que permitiu aos seus promotores organizar e potenciar os desígnios coloniais que passaram pela ocupação das terras, condição primeira para a plena e efectiva colonização”.

Depois de muita indignação e pressão de internautas angolanos no país e na Diáspora e de estudiosos da História e culturas africanas que usaram as redes sociais para exprimir forte contestação a mais uma medida típica do endocolonialismo, a direcção da Clínica em causa, dois dias depois,  recuou, pedindo desculpas pela medida proibicionista.

Para tal, emitiu outro comunicado alegando má interpretação de uma orientação (não especificada) “baixada para disciplinar um certo incidente que ocorreu entre profissionais e utentes não falantes da língua local que reclamaram sobretudo na altura da prestação de cuidados.”

Este episódio, longe de ser um acto isolado, tem enquadramento num plano em que a classe política surge como timoneira da jangada que rema no sentido da desafricanização de Angola.

Nesta senda proibicionista, no País há escolas do ensino básico e médio, onde jovens rapazes vêem negado o seu direito de, por exemplo, usarem penteados ditos afros, como deixar crescer o cabelo, usar rasta ou tranças, sendo obrigados a ter o cabelo cortado rentinho ao couro cabeludo, a “escovinha”, sob o olhar silencioso de poderes públicos e políticos.

Por outro lado, o País político, para dar primazia à língua portuguesa, apagou da Constituição as línguas nacionais, colocando-as em clandestinidade institucional, retirando-lhes, desta feita, o estatuto e dignidade de elemento definidor da cultura e do ser angolano.

Ismael Mateus, jornalista e analista político | Foto: Angop

Crítico da desafricanização de Angola, Ismael Mateus, jornalista e analista político angolano afirma, num notável apontamento, que as elites angolanas “estão muito ocidentalizadas e algumas figuras de referência são meros reprodutores de uma mentalidade ocidental cheia de preconceitos sobre os africanos”.

Sendo as línguas elementos preponderantes das culturas a sua secundarização ou terciarização como acontece em Angola, constitui também uma forma de marginalização ou exclusão dos angolanos que não têm o idioma português como língua materna ou principal língua de comunicação.

Num País onde o ensino pouco ou nada faz pela promoção e desenvolvimento das línguas nacionais ou onde para se ser locutor de rádio ou de TV emitidas em língua portuguesa, mais importante do que o domínio da língua, as suas regras gramaticais e lexicais é a capacidade de “afinar” ou seja, de ter uma dicção igual ou o mais parecida possível a um alfacinha, um lisboeta de gema.

De tal forma é a exigência, que se transforma na ridicularização desses locutores que, para demonstrarem que obedecem aos anacrónicos requisitos solicitados, muitas vezes, parecem “mais papistas do que o papa” e ouvimo-los, sobretudo na TV, a lerem Angol, em vez de Angola.

Com isso tentam ignorar que a dicção é intrínseca ao local, à cultura, à influência etno-linguística de cada grupo social em que a pessoa está inserida e ao seu processo de socialização.

Para o jornalista angolano Paulo de Jesus, “enquanto os valores nacionais vão sendo maltratados, sem qualquer pronunciamento do partido no Poder, outros (des)valores têm sido impostos à nossa sociedade por estrangeiros, estando os angolanos indefesos”.

Torna-se preocupante a normalização dessas atitudes, num País, onde a classe política é exemplo pela negativa quando, em pleno Parlamento, deputados da maioria chamam de bailundo e sulano a um colega da oposição, sem que isso cause qualquer perturbação a quem detém o Poder.

Ou quando um ex-primeiro-ministro do partido maioritário, natural do Huambo, é vaiado e chamado também de bailundo (nome pejorativo que a colonização conotava com boçal, atrasado, ser inferior), numa passeata realizada por membros de organizações dessa formação política.

Fomentando, dessa maneira, a divisão e a discriminação tribal na casa que deve ser de todos, representativa de todas as sensibilidades e grupos étnico-culturais angolanos.

Neste quesito, reproduzem a máxima colonial de “dividir para melhor reinar” que dividia os angolanos entre indígenas ou matumbos e assimilados ou civilizados em função da menor ou maior aculturação.

Estas atitudes trazem à memória o modus operandi do regime colonial fascista para o qual os africanos que assumiam as suas culturas eram “atrasados e primitivos” que precisavam de ser “civilizados” e a língua portuguesa era um dos instrumentos de opressão desses povos.

É assim que no ano lectivo 1965/66, numa sebenta do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, podia-se ler: “o terrorismo a ferro e fogo tem de ser aniquilado pela acção militar, e ela é imprescindível e quer-se fulminante, mas a batalha final, a cem por cento de rendimento, é a batalha pela língua portuguesa”.

“Com essa vitória a Nação forja a sua melhor arma”, conclui a citada publicação do curso de extensão universitária daquele instituto da Universidade Técnica de Lisboa.

Todos esses posicionamentos surgem como o prolongamento da cultura assimilacionista colonial que pretendia converter o “homem africano” em “europeu”, tendo por base o princípio fascista da superioridade da cultura europeia sobre as culturas africanas.

Comportamentos que se assemelham à “missão civilizadora” do colonialismo português que menorizava as populações e as culturas angolanas.

Para os colonizadores o negro para se tornar “assimilado e civilizado” e adquirir o estatuto de cidadão tinha de abandonar “inteiramente os usos e costumes da raça negra”.

Proibir ou impedir o desenvolvimento das culturas nacionais pode ser o caminho para a negação da resistência à ocupação colonial desencadeada desde o século XV pelos povos dos territórios que hoje constituem Angola ou a Luta de Libertação Nacional que culminou no maior feito histórico da História recente do País: a Independência Nacional.

Luzia Moniz é jornalista. O artigo foi publicado originalmente no “Novo Jornal” e é republicado pelo Jornal Opção com autorização da autora.

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