Estive ausente, é verdade, sei também que não notaram, claro, e ainda bem. Fiz uma pausa da escrita, primeiramente involuntária e que depois virou voluntária. Busco tudo que está ao meu alcance para me garantir com as ideias sadias, no geral dá certo. O problema é no particular. Sou magrelo e fiquei mais de meses com falta de apetite. Perdi peso e não posso. Comer é tão bom, mas eu não queria. Fiquei animado com a possibilidade de ser a tal da “h-pylori”, pois não sendo, seria de fundo emocional. E, como sabemos, bactérias, mesmo as duras na queda, pegando de jeito a gente mata. Se for emocional é mais difícil, porque não dá pro mundo parar pra gente oscilar menos.
Agora já estou com fome. Era a dificuldade em digerir a realidade, meu terapeuta me lançou essa, concordei e sorri. E depois gastei a sessão seguinte falando sobre o aniversário de 1 ano e 1 milhão de doláres da reforma da minha casa que nunca acaba. Já quase. Esses finalmentes…
Tenho dito aos meus amigos que nem quero mais que termine, por dois motivos: 1) se finalizar algum dia, eu vou me irritar, passar mal, ter nervoso, com o quê!? Dizem que um homem sem problemas é só um menino. “Oh! Que saudade que tenho / Da aurora da minha vida, / Da minha infância querida / Que os anos que não voltam mais!” 2) já estou com medo de terminá-la, e, pá-puff, eu morra. E o que é pior, não aproveite as mudanças. Apesar da vantagem de ter minha dívida com o banco quitada. Uma das melhores perguntas do melhor entrevistador, Antônio Abujamra, em alusão a Bertold Brecht, era: “O que fez mais mal a humanidade: a criação da igreja ou dos bancos?”
Como estou vivo e tenho problemas a resolver; vamos a eles. Preciso fazer a arrumação, seleção, limpeza dos muitos livros que temos para sacramentar um dos lugares sagrados da casa: a biblioteca. É uma casa de professores que gostam de livros, de leitura e de cultural no geral. Além de estar completamente bagunçado e desordenado, tenho que adicionar minha biblioteca pessoal, construída desde o ínicio da graduação em 2001, passando por quando me tornei professor, crescida significativamente ao me tornar professsor na UFT (Universidade Federal do Tocantins) no fim 2011, cursando o doutorado, e agora, ao retornar de uma temporada em Lisboa, no último dia de 2022. Desde então decidi não comprar nenhum livro a mais até que tivesse um bom lugar de acolhimento – promessa que não cumpri, mas só uma compra e recente, e depois que o fim da reforma se avizinhava. 23 anos de livros próprios, desses, 18 como professor. Mais os livros do meu pai, construída arduamente, e do meu irmão Pablo, filósofo. Uma só biblioteca. 3 em 1. E montar o ambiente para também ser um espaço de socialização. Tarefa nada fácil. Tudo isso com um período eleitoral no meio. Com cadeiradas e tudo.
Tinha que pedir ajuda, óbvio. Pedi nas redes anti-sociais, e elas cumpriram a sua função primeira. Muitos amigos se prontificaram. Meu critério foi: as primeiras pessoas a levantarem a mão. E não por acaso, as pessoas que se oferceram de imediato foram alguns dos amigos que mais gostam de livros, de leitura e cultura no geral.
Seriam só quatro chegados pra não virar festa, um deles estava confirmado antes da postagem com o pedido de ajuda, um amigo dos mais antigos com quem dividi livros, ideias e experiências, Manoel Gustavo, e que aprendi teoria, mas não só. Depois o poeta e professor de literatura Pettras Felício, filho do amigo de juventude e comunismo do meu pai, o escritor Brasigóis Felício, de quem eu havia lido alguns livros; ademais, tive a honra de ser professor junto com o Pettras em um escola na qual ele era sócio e noutra escola em que meu pai tinha sido professor lá há 30 anos, e isso era 2010. Na sequência recebi mensagem do crítico e professor de literatura, Carlos Augusto Silva, que conheci na graduação e que ama literatura e arte desde sempre. Não conversavámos muito nessa época, e nos aproximamos depois que ele foi morar fora de Goiânia, por maior período em São Paulo. E por último, Beto Cupertino, compositor e líder da banda Violins, que acompanhei os ensaios da época em que eles cantavam em inglês, amigo e filósofo de formação. Pronto, não iria faltar uma boa prosa de letras.
Diversão certa, mas o trabalho em primeiro lugar. Afinal, tínhamos uma biblioteca para colocar de pé. Grosso modo, a ideia era sentar eu e minha irmã (dois atáxicos) e meu pai (um jovem idoso), e fazermos a indicação de selecionamento do material, que os amigos iriam trazendo.
Uns dias antes, meu pai descobriu que iria em um casamento durante o dia e no dia minha irmã não pode. Seria eu e os comparsas. A sorte do dia agradável foi uma chuva que caiu todo o dia, e deu ares de clima serrano. Chegaram, com o café da manhã em punhos. O Pettras me prensentou não só com o seu livro de poesia, como também com um vinho Malbec protegido por uma ‘camisinha’ inflável, invenção das mais engenhosas e espertas. Depois do meu pai lhes receberem e atualizarem notícias memorialistas sobre gente de cultura literária de conhecimento e convívio comuns – a história da “arrecadação” para a guerrilha do araguaia vale um conto. Com café tomado fomos ao trabalho com os livros. Entre um respiro e outro alguma intelectualice, fofocas (ou como diz o Carlos: “crônica da vida comum”, segundo o Manoel, “maledicência mesmo”), ideias, referências e histórias.
Falamos algum tanto da situação política calamitosa, de que vivemos uma quadra histórica de reacionarismo de extrema-direita, da fatalidade ignorante de pessoas ingnóbeis de quinta categoria dando o norte e surfando na onda, política e culturalmente, da nossa sociedade da informação. O Manoel tem um frase perfeita sobre essa nossa circunstância histórica: “Pior do que a esquerda, só a direita”.
Na tentativa de apontar que esse humor era coisa da idade adulta avançando eu o lembrei que ele não queria nem sair de casa mais, que quando jovens, estávamos em todas e sabíamos de tudo que rolava de evento cultural. Logo recebi o contraditório. “Cê tá loko sair de casa? Pra quê!? E eu sei o que acontece; mas não vou. Eu quero ‘não ir’. Não é o caso de passar despercebido, eu sei e não vou. E acontece muitas coisas na cidade, mas não vou. Inclusive, tenho uma programação extensa até o ano novo de eventos que não vou. Tem um puta festa de réveillon e eu não vou. Deixar meu vinho, meu filme, a música que escolhi escutar, os livros, meu fumo pra sair? Esquece.”
Falamos alguma fofoca, que ao meu ver é uma “arte narrativa” e se difere da intriga, essa sim uma “arte da vingança e da raiva”. Enquanto na fofoca pode haver o “eu” envolvido numa história, mas sempre para contar, fazer uma narração, a intriga coloca-se o “eu” secundariamente, mas sempre para obter vantagens, que seja para contemplação do ódio. Uma é desinteressada, a outra interessada. A intriga é do mal. Numa das intervenções prometi um texto que focaria nessa diferenciação, mas não imaginava um resumo tão sucinto.
A certa altura, ao pontuar que falei, preocupadamente, ao psicoterapeuta sobre não achar muito bom despertar nos outros um sentimento de caridade, em função da ataxia, ele me disse: “Acho que você não deve se preocupar com isso. Ninguém anda fazendo caridade hoje em dia. Se fizer, deixa, é ótimo.” Pensei: A gente acusa a sociedade de ser individualista e quando não são a gente acha ruim? Lembrei de quando atravessava uma avenida, com a locomoção difícil e a marcha toda desorganizada, então que uma moça cruzou comigo e perguntou: “Você quer ajuda?” E eu: “Uai, sim, quero.” E aí que ela continuou andando e foi. Fiquei puto, abalado e triste. Qual a razão em oferecer ajuda e ignorar? Talvez ela não esperasse que aceitaria e foi ou que estivesse atrasada e foi. De todo modo, o que me incomoda ficou: talvez ela sentisse uma culpa original que a fez se oferecer; como em muitos trabalhos voluntários (lembro de quando li o sociólogo italiano Alberto Melucci e via o que estava por trás de muitas das ações coletivas). Algo disso está no filme, do Sérgio Bianchi, “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, que começa com uma referência ao conto emblemático de Machado de Assis: “Pai contra mãe”. Certo escravismo maldosamente e elegantemente presente, em personagens que vivem certa crueldade, justificada ou não. Contei da prosa com o terapeuta e o Pettras disse que concordava: “Se servir pra despertar um bom sentimento nos outros, foi bom demais, tem que deixar mesmo.”
“Tem lasanha. Pedi pra Sandra deixar montada, é só gratinar. Quando quiserem, é só falar.” Betinho foi apresentada ao Carlão e ao Pettras. Todos os colaboradores têm bons livros escritos, Beto, um romance salpicado de realismo fantástico; Manoel, um livro de contos; Pettras, uma novela existencialista e um livros de poemas, além de organizador de coletâneas de análise literárias de obras para o vestibular; Carlos, alguns livros de crítica literária. Só eu que não tenho. Acho mesmo que vou reunir essas e outras crônicas e publicar. Atirar-se, como bem disse Marx, ao publicar com Engels a “Ideologia alemã”, o texto à crítica roedora dos ratos. No meu caso seria mais, talvez, retirar os textos das críticas dos ácaros de gavetas, ou mesmo do limbo, obscuro e fundo, do lixo digital.
Fica para depois o relato, de passagem, dos autores e livros que esse dia maravilhoso fez estar entre nós. Talvez quando aprontarmos a outra mais da metade dos livros, que não movemos, ainda. Mas como uma forma de antecipação, o Manoel nos deu de bandeija: “Vamos sair mais revolucionários só de mexer nesses livros do Panta.” E eu completei: “Tem a obra poética do Ho Chi Minh aqui. Tá achando o quê?” E alguém diz: “Não sabia que o Ho Chi Minh escreveu poesia.” Mire e veja, Ho Chi Minh, o pai do socialismo do Vietnã. É mole?! Esquece.
Marcelo Brice é professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT), doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), com estágio pós-doutoral em literatura na Universidade Nova de Lisboa (UNL-IELT).
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