Camille Lichotti, José Roberto de Toledo e Luiz Fernando Toledo, TAB Uol
Um sargento acusado de estupro e inocentado pela Justiça Militar no Recife em 2003 voltou a cometer o mesmo crime em 2011, dessa vez em Porto Velho.
Na segunda ocorrência, foi condenado a 20 anos de prisão pela Justiça Civil e expulso do Exército, após a sentença transitar em julgado (quando não há mais possibilidade de recurso).
Sua esposa passou a receber uma pensão mensal — e vitalícia — de R$ 12.400 no mesmo ano em que ele passou a cumprir pena em regime aberto.
O valor é pago com dinheiro público pelo Exército.
O benefício é garantido a parentes de militares expulsos das Forças Armadas — entre eles, os que foram excluídos por cometer crimes.
Os parentes recebem “herança” antecipada porque ex-militares podem ser enquadrados na categoria de “mortos fictos”, originalmente reservada aos desaparecidos sem comprovação de morte.
Um levantamento mostrou que o Exército gasta R$ 19,7 milhões ao ano em pensões a parentes de militares expulsos.
Em 2003, um menino de 12 anos foi levado à Corte da Justiça Militar para confirmar o abuso que havia sofrido no Colégio Militar do Recife, onde estudava.
Segundo seu depoimento, o sargento Franklin Veras de Araujo Junior, professor da banda da escola, o levou ao banheiro, trancou a porta, mostrou o pênis e pediu ao aluno que tocasse seu órgão genital.
Franklin exibia fitas pornográficas aos alunos e só autorizava as crianças a pegar em instrumentos musicais se elas lhe beijassem primeiro, contou o menino.
O ex-sargento, que tentou convencer os pais do garoto a retirar a denúncia, negou todas as acusações à Corte. Disse que era evangélico e não gostava de pornografia.
Outros militares do colégio depuseram a seu favor, sugerindo que a criança era culpada pela atitude “reprovável” por ter “comportamento homossexual”.
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A Justiça Militar absolveu Franklin por “falta de provas materiais”.
O Ministério Público entrou com recurso, mas em 2004 o Superior Tribunal Militar manteve a decisão.
Livre das acusações, Franklin prosseguiu na carreira militar em Porto Velho (RO).
Em 2011, porém, foi acusado de abusar sexualmente de pelo menos cinco crianças e adolescentes que frequentavam o curso de música da Igreja Adventista Central da Capital.
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Dessa vez, a Justiça Civil o considerou culpado.
A pensão vitalícia de R$ 12 mil deixada por Franklin é paga a sua esposa, Adriana Gomes Barbosa Veras.
Mas, como os dois permanecem casados, o ex-militar condenado acaba se beneficiando indiretamente do dinheiro.
Em 2018, o casal se mudou para São Luís. Franklin abriu uma microempresa de lava a jato e “estética automotiva”, a BCAR, quatro anos depois. Ela foi extinta no fim do mesmo ano.
Adriana, sua esposa, abriu em 2023 outra empresa no mesmo endereço —também de lavagem, lubrificação e polimento de veículos. O registro se mantém ativo no site da Receita Federal.
“Minha vida nunca mais foi a mesma depois daquilo”, diz Rafael Henriques, o menino desacreditado pela Justiça Militar ao denunciar abusos do ex-sargento.
“Em nenhum momento me senti seguro naquela audiência. Eles [o juiz militar e os advogados] jamais olharam para mim como abusado, mas como o abusador. Eu estava descobrindo minha sexualidade na época. Não sei se foi o fato de eu ser homossexual que os levou a isso.”
Ao Uol Rafael diz que os abusos eram rotina no Colégio Militar.
“Observei que outros alunos saíam muito atordoados dessa sala. Aí eu identifiquei que estava acontecendo a mesma coisa com eles.”
Rafael comentou com um amigo da sala o episódio no banheiro. O colega contou para a mãe, que procurou o Colégio Militar para denunciar o caso.
Após o julgamento, o rapaz se fechou por completo. Começou a se sentir culpado e não conseguia mais fazer amigos.
Os colegas de turma, levando o bullying a um nível mais cruel, passaram a cobrá-lo pela acusação contra o sargento.
Rafael lembra uma dinâmica feita pela psicóloga do Colégio Militar no ano seguinte ao do julgamento.
No meio da atividade, uma das alunas disse: “Rafael faz parte dessa turma? Eu esqueci que ele existia”.
“Essa frase nunca saiu da minha cabeça. Só comecei a respirar como um ser humano depois que eu saí do Colégio Militar”, conta ele.
O pai, que também era militar, foi deslocado para servir no Amazonas, onde o rapaz pôde construir uma vida nova.
Mas o trauma não desapareceu por completo. Hoje com 33 anos e morando nos Estados Unidos, ele ainda sente dificuldades para se relacionar e iniciar sua vida sexual.
Rafael não sabia que o sargento foi condenado em 2011 por abusar de outras crianças. Ele diz que, se Franklin tivesse sido punido antes, outras vítimas poderiam ter sido poupadas.
“Saber que ele continuou fazendo vítimas me deixa completamente?”, diz, sem terminar a frase. “Ele já devia estar preso há muito tempo.”
Também foi uma surpresa para a mãe de Rafael, Mirtes. “Meu Deus, fico até arrepiada”, diz ela.
É como se a condenação lavasse a alma da mãe. Ela não teve condições de continua com uma briga judicial pelo filho e era obrigada a assistir ao sargento, livre, desfilando no 7 de Setembro no Recife.
“Eu era leiga na época e não tive nenhum apoio psicológico nem moral. Fui coagida a desistir e não tive como perseverar no processo [judicial].”
Apesar da condenação, Rafael não considera que a Justiça tenha sido feita, já que o sargento ainda usufrui de uma pensão de R$ 12 mil, paga à esposa em razão de sua demissão do Exército.
“É completamente errado que eles continuem ganhando dinheiro público depois da condenação. Para mim, ele não tem esse direito.”
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